Eu fico impressionado quando meus, amigos, familiares ou
qualquer outra pessoa diz que se lembra do que gostava de fazer, comer ou
brincar quando era criança. Eu não tenho essa habilidade. Minha memória não é
uma das minhas maiores qualidades. Acredito que memória e pontualidade disputam
cabeça a cabeça a ponta para ver qual é o meu maior ponto fraco, não me
esquecendo de, é claro, a ansiedade, correndo por fora, meio que despercebida,
mas sempre lá no meu top três. Lembrar datas, coisas que aconteceram ou me
contaram não é meu forte, para provar isso posso citar o dia em que eu esqueci,
por alguns segundos, a data do meu aniversário. Isso é ou não é o cúmulo do
esquecimento? Não fica difícil acreditar que eu não me lembre de muito da minha
infância.
A mais distante lembrança que tenho da minha fase de projeto
de gente está associada não a fatos, mas, sim, a quem eu atribuo o título de
minha primeira amizade, pois foi a primeira pessoa a quem eu senti aquele
carinho especial que sinto e dou a todos os meus atuais amigos. O nome dela era
Lipi. Uma dálmata. Mas não uma dálmata qualquer, era A dálmata. A mais linda e
doce que eu já vi. Eu não sei de onde ela veio, meus pais dizem que ela tinha
sido dada a nós por uma amiga que ia se mudar e não tinha mais aonde coloca-la.
Lipi era doce, especial e era a minha primeira amizade. Lembro que ela adorava
fazer suas necessidades básicas em lugares que não eram necessariamente feitos
para isso, deixavando um rastro de fezes por onde passava. Era fácil achar ela.
Siga o caminho de merda, dizia o manual. Foi um vizinho nosso que a ensinou
para onde correr quando o número dois ou número um estivesse prestes a sair.
Esse mesmo vizinho por sinal, também podia se dizer meu amigo, mas não me
lembro de rosto, nem do rosto de sua mulher, que também era minha amiga. Faziam
coisa para eu comer e como não tinham filhos gostavam de me bajular. Eu, claro,
não achava ruim. Nessa época eu era fissurado em Power Rangers e a sala deles
era a minha sala de cinema para assistir os episódios. Não me lembro do rosto
de meus vizinhos, mas me lembro do rosto de Lipi. Era como a de todas as outras
dálmatas, mas ela era diferente. Lembro que toda vez que eu acordava a primeira
coisa que fazia era abrir a porta para ver o sol, na mesma hora ela corria em minhas
direção para me dar o seu bom dia canino e se eu precisasse usar o banheiro,
que ficava fora da casa, durante a noite, Lipi me escoltava e eu gostava
daquilo, era como ter sempre alguém cuidando de mim. Não que eu me sentisse com
medo de sair à noite, tah, eu sentia um pouco, e a escolta dela me fazia sentir
mais tranquilo.
Um dia Lipi fugiu. Não me lembro se ela voltou no mesmo dia
ou se demorou para achar o caminho de volta. Sei que ela voltou e depois de
algum tempo descobrimos que ela estava grávida. Pouco tempo depois, Lipi estava
cuidado de seus Lipinhos, era como se o quintal de casa fosse um canil só de
dálmatas ou um episódio do desenho 101 Dálmatas, lembra? Cada filhote era menor
que o outro e eu bem que gostaria de pegar um deles no colo e ver como eram de
perto, mas Lipi não deixava, protegendo de todos, como se já soubesse o que
iria acontecer. Depois que eles pararam de mamar, meus pais distribuíram os
filhotes de Lipi pela vizinhança e eu não sei se isso a abateu. Deve ter
abatido.
A última lembrança que tenho de Lipi não é das mais felizes.
Era um dia de mudança. Da nossa mudança. Meus pais e eu íamos sair de onde
estávamos e ir para outra casa, onde no quintal moravam também meus tios e suas
filhas. Eles já tinham um cachorro. Um pastor alemão bonito. Grandão. Que
botava medo em qualquer um que passasse por ali. Por esse motivo, Lipi não poderia
ir conosco para essa nova casa. Foi isso que meus pais me disseram. Ela ficaria
com um vizinho nosso e ele prometeu que cuidaria dela como nós cuidávamos e ela
ficaria bem. Enquanto íamos embora, eu via Lipi lá do caminhão de mudança, ficando
cada vez mais longe de mim. Meu bom dia canino tinha acabado. Era um adeus. Eu
sabia disso e tenho certeza que ela também sabia. Tempos depois nós voltamos
para visita-la, mas ela não estava nada bem. Não era mais a mesma de antes,
parecia doente e um pouco desanimada. Meses depois, meus pais me disseram que
ela não estava mais com o nosso antigo vizinho, só que eles não se decidiram se
ela havia morrido ou se tinha fugido e não voltado mais. Até hoje eu não sei
qual o verdadeiro final.
No fundo eu sei que ela estava mal por não estar mais
conosco, por termos deixado ela com outra pessoa, da mesma forma que a amiga
dos meus pais tinha deixado ela conosco. Às vezes penso que ela estava doente
por não me ter mais ali. Eu era seu amigo e acho que apesar de ser um animal
irracional ela sabia o que é amizade ou deveria sentir. Lipi foi minha primeira
amizade e minha primeira despedida. Ela foi minha primeira lembrança da
infância e uma das poucas que permanecem até hoje na minha cabeça. Talvez minha
memória não seja tão inútil assim; talvez ela só se lembre do que realmente
vale a pena lembrar.